Depois da belíssima vitória do Flamengo ontem sobre o Fluminense e ainda com meia garrafa de vinho pela frente para beber, decidi pegar algo para ler. Só para matar o tempo e a bebida. Coloquei um show do Iggy Pop que passava na televisão para tocar e escolhi um quadrinho em minha estante que há tempos estava lá pegando poeira. Li as mais de 200 páginas de Memória de Elefante de Caeto de uma única vez.

Lançado em 2010 pela Quadrinhos na Cia, eu topei com o livro no melhor lugar para comprar gibis usados em Goiânia, na Hocus Pocus (Araguaia com a Paranaíba, no Setor Central). A estética mezzo noir, com os desenhos todos em preto e branco, junto do texto da contracapa, foram os argumentos que me convenceram a desembolsar alguns reais pela obra.

A história trata da vida do próprio autor, o Caeto. Com sinceridade cortante, ele mostra seus perrengues pessoais de alguém que ambiciona a carreira artística em São Paulo nos anos 00.

E bota perrengues nisso. Financeiramente quebrado, bebendo muito além do razoável, com dramas familiares pesados, o autor vai contando sua história pessoal. Sem vitimismo, sem louvações. Mostrando com crueza em alguns trechos até constrangedora seus mais vis, egoístas e maldosos pensamentos/atitudes.

Tenho a impressão que a construção do roteiro deve ter sido um puta exercício de terapia para Caeto. Lidar com os demônios internos nunca é moleza. E essa trilha cheia de armadilhas perigosas foi a opção dele para Memória de Elefante.

O pai do autor é homossexual assumido e portador de HIV. A relação entre os dois passa longe, por óbvio, do que entendemos como minimamente convencional. A mãe de Caeto mora no interior de São Paulo e toca sua vida como é possível. Com a irmã, ele mantém um contato distante.

Em meio a esse caos familiar, Caeto não escolhe prestar concurso ou abrir um pequeno comércio – caminhos que seriam os mais pragmáticos. Ele opta por editar zines, ter uma banda de rock e vender quadros na calçada. Walking on the wild side…

O grande mérito da obra é a sinceridade com que o artista trata de temas que qualquer um, eu incluso, preferem deixar entre quatro paredes (quando não somente em sua própria cabeça). Publicar tudo isso mostra uma coragem que separa artistas que têm algo a dizer dos que estão por aí só para ganhar aplausos e, se possível, uns trocados. Com Memória de Elefante, Caeto prova que é do primeiro time.

Pablo Kossa é jornalista, produtor cultural e mestre em Comunicação pela UFG.

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