Macho-fêmea, masculino-feminino, essa identidade de gênero é estabelecida antes de um ser vir ao mundo, antes de saber se é negro, se é branco (…), e é a ciência médica que determina isso. (Beth Fernandes)

Nome que representa uma reivindicatória de militância pela luta dos direitos LGBTI em Goiás e no Brasil, Roberta Fernandes, ou melhor, Beth Fernandes é uma daquelas mulheres que não fogem à luta.

Psicóloga, Mestre em Saúde Mental, possui também quatro pós-graduações em Educação e duas na área Clínica, mas há muito reconhece seu lugar de fala junto aos movimentos sociais, não só por sua formação acadêmica.

Ativista política, presidente da Astral (Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros de Goiás), entidade que desde 2000 realizando trabalhos de prevenção de DST/HIV/AIDS e de atendimento e de suporte em casos de violências de gênero e/ou sexuais; e do Fórum de Transexuais de Goiás, Beth Fernandes representa uma boa parte da história do movimento LGBTI.

Atualmente compõe o Conselho Estadual da Mulher, é vice-presidente do Conselho Estadual da Mulher, conselheira do Comitê Nacional do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e do Conselho Nacional de Saúde LGBTI, papeis que mostram não só o enfrentamento quanto a estas causas em especial, mas o reconhecimento do seu direito irrevogável de falar como mulher, transexual, cirurgiada.

Lugares estes que vêm sendo bravamente tomados desde os anos 80, com valor e trabalho incansável, o que faz com que Beth Fernandes esteja entre as personas entrevistadas na nossa série 5XArte? Porque além da arte de se expressar sensivelmente em estéticas cotidianas, está a arte de ser e reconhecer-se. Direitos irrevogáveis para gente refletir a partir das linhas que se seguem.

Como verá quem nos lê, deixamos vazar muitas delas, por que nossa busca prioritária, mais que encaixar os corpos e pensamentos nos espaços, é dar vazão aos poros, sensibilidades e asperezas dos temas que nos movem. Muito prazer, Beth Fernandes! Liberdade de expressão sempre!

Ideologia de Gênero X Identidade de Gênero

Cada um tem uma ideologia e uma ideologia de gênero.  Eu particularmente não acredito, nunca debrucei sobre uma relação da ideologia de gênero pensando como uma condição do ser humano. Cada um tem sua ideologia. Só de se perguntar qual sua ideologia, a gente já se afirma nas suas relações culturais e em um determinado contexto.  É uma expressão que foi inventada dentro da contemporaneidade, marcada por conservadorismo e conservadorismos religiosos, no sentido de pensar que as pessoas têm liberdade de gênero e têm que ser restringidas.  Eu falo sobre identidade de gênero, não em “ideologia de gênero”, por que falo da minha identidade e sobre o fato das pessoas terem várias identidades.  Neste momento estou indo para Boa Vista, para tratar de questões relacionadas às pessoas trans da Venezuela, com sua cultura, com sua ideologia, mas estou falando em identidade de gênero. Aquilo que a pessoa se identifica, com qual gênero ela pertence.  Enquanto psicóloga, destaco que é uma pergunta simples que você tem que fazer no seu cotidiano: como você se sente?  Não para que pessoas se sintam iguais dentro de um gênero, dentro de um quadrado de gênero. Elas podem se sentir mais, sentir menos, podem se sentir iguais masculinas, menos masculinas, zero masculina (…). A questão é como elas se sentem… Eu defendo a identidade de gênero.  Não tem como incentivar uma identidade de gênero, isso seria padronizar os gêneros eu sou contra qualquer padronização, nos não somos robôs.

Estética X Representação

Eu tenho mais de 50 anos, eu venho de uma relação com reforma cultural, a contracultura, o movimento hippie, movimento reivindicatório, paz e amor, de liberdade da expressão sexual.  Isso tudo foi restringido nos anos 80, em função do militarismo na época, mas ainda existiram os grandes “Woodstooks”, quando também se criou uma estética da liberdade de expressão sexual, não de liberdade da prática sexual. Eu venho desta época, desta discussão cultural, quando a ditadura no Brasil, “finda-se”, entre aspas, por que ela deixou de existir enquanto nomenclatura, já que ela continua explícita de outras formas, principalmente na arte. Tivemos recentemente dentro de um museu (ou museus sendo fechados), em função de a arte estar posta dentro de uma perspectiva sexual… Algo que não poderia ser falado, uma discussão deles que estão querendo dominar o mundo, colocar essa expressão como liberdade sexual. Com o surgimento da AIDS, uma doença que veio restringir todo um comportamento sexual, principalmente nos primeiros casos, veio restringir principalmente os homossexuais, por que isso era coisa de gay, “a peste gay”,  problema de saúde ficou marcado por duas, quase três décadas, com a ideia de que era “coisa de viado”.  Só começou-se a estudar a AIDS de fato quando surgiram crianças soro positivas e casais hetero se manifestando como HIV positivo, foi quando começaram a repensar estre quadrado. Como até hoje tem a medicina conservadora alguns falam que isso é uma peste Gay, que é reflexo da liberdade sexual.  Agora esteticamente as coisas mudam… Vamos pensar o homem no século XVII, depois da escravidão, meados do  século XVI.  Recentemente eu postei no meu face a história da sexualidade nos anos 50, 60, como era a estética, como era visto o corpo, o que era completamente diferente do que é hoje. Na arte, esteticamente, as pessoas são diferentes na sua expressão. As mulheres no mundo medieval eram gordas, hoje nos desfiles são magérrimas. Penso no gênero, vamos pegar as mulheres do século XVI até hoje elas são completamente diferente, inclusive ser mulher não é ter uma vagina.  Esteticamente a gente muda isso. A gente vê pinturas do século  que mostravam a mulher, mulher nua e a vagina, um corpo gordo, hoje é totalmente diferente.

Binarismo X Papel de Gênero

A identidade de gênero é colocada e posta antes do nascimento, antes das pessoas terem rosto, antes de nascerem, quando ainda estão dentro do útero. E a ciência médica é muito sacana, porque ela quer padronizar testes e, se eu fiz um exame da sua saliva, eu sei que seu feto vai ser masculino ou feminino. O binarismo está posto socialmente, isto esta posto culturalmente, não tem como o não binário e a teoria Queer querer mudar isso é uma ilusão. Macho-fêmea, masculino-feminino, essa identidade de gênero é estabelecida antes de um ser vir ao mundo, antes de saber se é negro, se é branco (…), e é a ciência médica que determina isso. Aí eu pergunto como que essas pessoas podem ser vistas de uma determinada maneira antes de estarem no mundo?  Acabou que estão inventando algo como se fosse uma “geneticidade cósmica”, de forma que se eu tiver uma atração por um homem tal, ovulando tal dia eu posso ter uma esta “geneticidade cósmica”.  Diante deste binarismo posto, sinto muito a teoria Queer, mas neste aspecto ela faz um avanço enorme depois da contracultura, porque ela cria outras discussões sobre a sexualidade dentro das relações culturais. Nasce-se macho\fêmea, dentro de uma tormenta do que pode vir a ser o gênero. O que está estabelecido biologicamente são os intersexos ou hermafroditas, como eram chamados antigamente. Isto é uma coisa, identidade é outra coisa. Nasci eu Beth Fernandes, com um sexo estabelecido biologicamente, mas eu me identificava dentro de outra condição cultural de gênero que é chamada de feminino. Por que antes de eu nascer, meu pai, minha mãe, meus irmãos falavam “vai ser menina, vai ser menino”, e criaram uma condição de gênero cultural na minha família: trejeitos, roupas, sapatos, bota, botina, isso tudo era um papel de gênero, que são atributos da cultura de gênero. A minha cultura traz outros atributos, quando a gente fala da arte, da estética da arte, o meu batom eu uso vermelho choque, em uma determinada cultura este vermelho choque não entra, quando é estabelecido um papel de gênero completamente diferente. Estas mulheres que usam estas roupas que a Beth Fernandes como doutora, não são mulheres dentro de uma sociedade conversadora. Isso é papel de gênero, identidade de gênero é outra, estabelecido está macho e fêmea, tanto que a transexualidade começa a ser estudada, a partir do intersexo \ hermofroditismo. Começaram a fazer cirurgia e aí perceberam que era mais fácil fazer uma vagina que um pênis, às vezes não sendo aquilo que a pessoa se identificava, quando as pessoas viram que era estabelecido um determinado gênero e ela não se identificava com ele.

Heteronormatividade

Práticas sexuais é outra coisa… A pensar o sodomismo ou masoquismo que acontecia na Grécia antiga, entre outras culturas. Você querer fazer sexo anal, só sexo anal, não querer fazer isso, são práticas irrelevantes a questão do amor e do desejo. As pessoas podem ter desejo de um homem por outro homem, não ter a prática sexual e vai escoar a sexualidade para outro lugar.  Um dos motivos que as pessoas mais têm o ódio da homossexualidade é quando alguém vê que deseja as pernas cabeludas, a bunda de outro homem…  Eu não posso ter isso, minha cultura não me ensinou a isso, de forma alguma. Desejo é outra coisa, amor é outra coisa. A gente vem de um pensamento cultural de que o amor é sublime, aprende-se isto desde a infância, e ensina-se isso. A mulher é feita só para casar, só para ter o homem e mais nada. E aí tem toda uma história das relações das diferenças de gêneros. “Feche suas cabritas que meu bode está solto”, um monte de ditados que a gente vê da cultura nossa cotidianamente… Homens ficarem com 10 mulheres, e se as mulheres derem dois beijos em homens diferentes, ela é puta, vagabunda.  Então tudo é completamente diferente: prática sexual, desejo, erotismo, amor então, está dentro de uma postura ideológica e encaixa as mulheres neste sentido. Elas têm que amar, ser amadas, arrumar marido, ter filhos… A cultura quer impor uma condição. Mudar a gente muda na educação e na cultura. Ensinar minhas filhas que não é bem assim, mudar a forma que foi ensinada pela minha vó, o que é totalmente diferente.

Arte X Clichês

Eu conheci recentemente uma menina que faz crochê de órgãos genitais, aquilo é arte. Esta fazendo arte, construindo uma forma de pensar a arte. Quando nos quadros antigos pintavam-se as mulheres gordas, as vaginas gordas aparecendo, era arte.  Hoje se fizer o mesmo quadro você pode ser taxado de louco, que aquilo não é arte e você pode ser censurada. Eu acho que a arte vai além… Eu fico pensando, sempre quis estudar comida, uma alquimia da comida, cheiro, textura, olhar, tudo sobre a comida. Na minha época, quem mexia com isso era “viado”, “bichona”; tanto que meu pai falou: “você passou em quatro vestibulares, você vai estudar, não vai ser cozinheira, eu quero que seja doutora, não quero saber de você numa cozinha”. Fato que mudou dentro desta arte, o que hoje é relacionada à chefia dentro a culinária. Hoje mudou tudo, é completamente diferente. A arte muda a cultura, a música muda a cultura, a arte tem um papel educativo fundamental na construção do ser humano como um todo. Ela tem um papel educativo, quando eu falo que o funk tem expressão cultural forte da comunidade, pega pesado com bordejos horrorosos sobre o corpo da mulher. Nós do movimento feminista apoiamos a reflexão sobre isso para gente pensar o que é feito com a mulher e como isso é aprendido, a luta que nos temos contra a cultura do estupro, olhamos para isso como formas de aprendizagem também… Aqueles “trenzinhos do Rio” e a violência que as meninas sofrem isso é ensinado também na música do funk, sinto muito. Têm artistas que já cantaram estas coisas, e não cantam mais, porque começam a pensar nas crianças pequenas reproduzindo, repetindo, tudo aquilo, e ela vai entender que isso é normal. Tem que proibir? Não. Sou contra a ditadura, mas a gente tem que fazer música reversa a isso, como a pintura, como a própria fotografia tem que rever a imagem que tem sobre o corpo da mulher. Eu vou muito além, a ciência médica como autoridade sobre o corpo.  Temos cinco centros de cirurgia transexual no Brasil, não tem uma médica. Todos os médicos homens fazendo vagina com um olhar do médico sobre a vagina. O olhar do homem sobre a vagina é totalmente diferente do olhar da mulher sobre a vagina, mas isso foi aprendido culturalmente porque a minha tia, minha vó diziam “eu não vou ao ginecologista mulher”.  Não é depreciando aquela mulher que tem a vagina tanto quanto a outra. É uma questão de patrimônio, até inclusive do corpo, da estética… A maioria das estéticas de vagina, as plásticas são feitas com um olhar masculino, pouco pelo, pouco isso, pouco aquilo, o corpo comandado. Agora pensar isso numa arte, num cinema, na música, na arte como um todo, o que a gente tem que trazer de novo é uma luta, é uma educação, um processo educativo e isso foi tirado da escola básica, de ensinar que ao outro que uma cor, um vermelho não é coisa de mulher, é uma cor vibrante (…) Isso é educação. A arte foi tirada da educação primaria quando a gente aprendia a ter um olhar diferente sobre as coisas, as crianças não aprendem mais sobre isso.

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Foto: reprodução

Janaina Gomes é criativa, capoeirista angoleira, comunicóloga, dançadeira, Shiatsu terapeuta, performer, eterna estudante. Arrisca a se jogar em tudo que lhe dá na telha, especialmente, quando em boas companhias. Pílulas sensíveis de gente arteira enviar para janainagomes@gmail.com.

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