OpiniãoOQRRevistaTendência Pablo Kossa

Réquiem para Selma Sena

6 de agosto de 2019 Nenhum Comentário

O ano, 1999. Eu, calouro no curso de Jornalismo na Facomb da UFG. Ela, professora de Cultura Brasileira. Foi nesse contexto que conheci Selma Sena. Poucas figuras de sala de aula me marcaram tanto quanto a antropóloga.

A fama da professora circulava nos corredores. Os veteranos caprichavam nos relatos. Nós, calouros, já sabíamos qual era seu perfil. Inteligência aguda, língua ferina, gostava de beber com os alunos. Sempre de óculos escuros, sempre com um Marlboro vermelho entre os dedos. Figuraça.

São tantas histórias para contar, algumas totalmente impublicáveis, que me perco por onde começar. Foi no Bar Rio, no Setor Universitário, onde fiquei sabendo mais de sua história pessoal. Ela não topava beber em outros lugares. Afinal, o bar ficava no mesmo quarteirão de seu prédio. Depois de incontáveis garrafas, voltava a pé para casa. Estratégica.

Nas primeiras aulas, fazia questão de quebrar os conceitos que a molecada egressa do segundo grau ainda trazia. Escancarava que a relação entre professor e alunos era diferente naquele universo. Para mim, nada novo. Vindo da Escola Técnica Federal de Goiás, eu estava em casa. Não posso dizer o mesmo para vários colegas de classe.

O primeiro trabalho que passou para turma foi definir o que entendíamos sobre cultura brasileira. Foi explícita: “Respostas de, no máximo, oito linhas. Não quero ler tratado de aluno de primeiro ano sobre cultura”. A turma achou a fala dura. Também achei. Hoje, entendo perfeitamente. Ela estava errada?

Quando devolveu os trabalhos, aquele festival de notas baixas. Um debate sobre a tal cultura brasileira teve início. Walter (por onde anda essa figura?) fez uma pergunta cheia de contextualizações, bem típica de gente como a gente, alunos de jornalismo de primeiro ano de faculdade pública que se acham a nata da intelectualidade, sobre sua nota no trabalho. Ele abordou a multiplicidade de realidades brasileiras para engatar a pergunta: “Faz sentido a disciplina se chamar Cultura Brasileira? Por que não Culturas Brasileiras?”. Selma respondeu: “Faz todo sentido. Se não eu não estaria aqui com essa disciplina pra vocês”. Ponto final.

No Bar Rio, ela contou do seu período em Londres, do que sofreu no parto de sua filha por ser latina na Europa, das perseguições do regime militar, de sua admiração por Milton Nascimento e o autógrafo que conseguiu do artista no aeroporto de Brasília.

De carona com ela para o Setor Universitário, aprendi com Selma que devemos criar vínculos com os comerciantes. Ela sempre comprava carne no mesmo açougue do Jardim Pompeia, na volta da UFG. “Venho aqui há anos, pergunto dos filhos dele, brinco com todo mundo. Você acha que ele vai me vender alguma carne estragada?”. Lição que ainda carrego comigo.

Passado o primeiro ano de jornalismo, a vida adulta chegou com força na minha rotina. Com os dois pés no peito. Comecei a trabalhar como jornalista no ano 2000. Acabou a mamata. Beber de manhã no Bar Rio ficou no passado. Acabou o tempo livre para botecar com a Selma. Sempre nos encontrávamos nos corredores da faculdade, ela sempre com o cigarro e os óculos escuros. Depois que fui trabalhar no Diário da Manhã, encontrei a Selma algumas vezes naquele bar. Ríamos um monte e colocávamos o papo em dia. Mas nos distanciamos.

Semana passada, fiquei sabendo de sua morte pelo Facebook do amigo Deló (Ademar Lourenço). A tristeza veio. Sua postura de combate a toda e qualquer caretice fará falta. Muita falta.

 

 

Pablo Kossa é jornalista, produtor cultural e mestre em Comunicação pela UFG.

Comente

X