Estávamos almoçando no último sábado. Eu, a esposa e a caçula. Rango de final de semana, daqueles que saem tarde, depois das três horas. A manhã havia sido corrida. Já tínhamos ido até Nerópolis vender uns frangos vivos. Depois, fomos à Hocus Pocus renovar o estoque de gibis da baixinha.
Retornamos para casa perto das duas. A responsabilidade da cozinha costuma ser minha aos finais de semana e fiz uma macarronada. Enquanto dávamos as primeiras garfadas, o telefone tocou. Quando vi que era minha irmã, já sabia do que se tratava.
Olhei para a Andreia e falei: “Se prepara”.
– Oi, Pablo. Sei que você não acompanha grupos de WhatsApp, mas a Daicy morreu.
Há mais de mês a ligação com essa notícia, que estava meia hora no grupo da família, já apontava em meu radar. Tanto que eu já sabia o que fazer. Perguntei dos procedimentos burocráticos. Ela disse que minha tia mais velha é quem estava tocando os trâmites.
Minha mulher trabalha na Saúde e, por questões profissionais, lida diariamente com a morte. Ela ligou para minha tia e passou as orientações da papelada, alertou das malandragens quem tentam fazer com quem está compreensivelmente abalado, explicou os procedimentos. Fomos tomar banho e seguimos para a casa dos meus pais.
A saúde de minha avó degringolou nesse segundo semestre. Para dar uma ideia, a foto que ilustra esse texto é do final de abril, quando ela esteve em minha casa para um churrasco de comemoração dos oito anos da caçula. Muito recente para o que vimos desde então. A queda da qualidade de vida que era lenta e gradual, como em toda velhice é. A decadência física se acelerou nos últimos meses.
Foram algumas entradas e saídas do hospital nesse período. Internação, quarto, UTI, quarto, casa, internação, exame, quarto… Tudo muito desgastante. A última vez que a vi no hospital foi triste. Ela estava com os braços machucados, muito debilitada. A lucidez vinha em ondas. Falava coisas pertinentes e, logo em seguida, algo que não fazia sentido. O que ela vivia não era vida. Não para alguém tão cheia de vida como sempre foi.
A casa sempre estava com a televisão ligada. Ou então o rádio. O volume, alto. O que caracteriza nossa família é o barulho. Sempre tem ruído, sempre tem gente falando. Alto. Ela é a responsável por essa característica comportamental de toda família Kossa.
Elogiava os netos gritando. Brigava com filhos gritando e xingando. Educava-nos aos tapas no braço, na bunda. Se estivéssemos precisando de castigo, era banho gelado de roupa e tudo. Depois, copo de água com açúcar para acalmar. E um leite quente com Toddy para acalentar. Chineladas foram várias. Explosiva na fúria, explosiva no carinho. Isso moldou meu caráter de forma definitiva. Se sou o que sou hoje, minha dívida é dessa formação que cobra com força e retribui com generosidade.
Seus dotes culinários eram marcantes. Destaco três pratos. Bolo de cenoura (talvez a medalha de ouro), bolinho de carne moída e pão amanhecido e macarronada à bolonhesa. Nunca consegui repetir nenhum dos três em casa. A técnica e os temperos que resultavam em algo de sabor único se foram com Daicy.
Na parte cultural, ela leva para o cristianismo. Se até vinte e poucos anos tive forte vínculo com a Igreja Católica, ela foi a responsável por essa marca na minha forma de ver o mundo. Ela se dedicava à religiosidade. Devota de todos os santos, de todas Nossas Senhoras. Tinha um Preto Velho na cozinha para quem dava café todos os dias e uma cachaça aos domingos. Mais Brasil que isso, impossível.
Por falar em cachaça, sempre quis sua caipirinha em datas festivas. Quando eu chegava com vinho, sempre queria uma taça. A tradição etílica de nossa família tem sua explicação evidente.
Nascida e criada no bairro paulistano da Liberdade, seus amigos de infância eram todos descendentes de japonês. Dizia que torcia para o São Paulo, mas não acompanhava o time. Gostava do Telê Santana e do Raí. Se alguém falasse mal deles na época áurea do tricolor paulista, levava um tapão no braço, é claro.
O sepultamento aconteceu no domingo pela manhã. Família pequena, pouca gente. Optamos por não falar da partida da Daicy nas redes sociais antes do enterro. Uma característica da família Kossa é ser paneleira ao extremo. É como somos.
A Daicy vive agora em meu avô, seus quatro filhos, nove netos e quatro bisnetos. Ou seja, a Daicy é eterna. Como a saudade de quem teve a sorte de compartilhar momentos com ela em vida.
Não tive a oportunidade de conhecer minha avó Elisa. A mãe de meu pai morreu quando ele tinha apenas 17 anos. Gente de sorte é quem tem a oportunidade de viver com duas avós. Não tive esse privilégio. Mas não posso reclamar. Pois a Daicy foi a melhor avó do mundo. E ela é eterna.

Pablo Kossa é jornalista, produtor cultural e mestre em comunicação pela Universidade Federal de Goiás
Que maravilha Pablo. Salve Daicy e família Kossa .