O medo é um poderoso agente educativo. Meu medo já me fez abandonar hábitos que definem o que sou.
Deixei de andar de skate por medo. Há bons anos, tomei um tombo e ralei toda parte traseira de minha coxa direita até o início da bunda. Eu, adolescente, cabeludo, todo metido a roqueiro, deitado de bruços só de cueca, com uma queimadura gigante de asfalto e minha mãe metendo Merthiolate sem dó, daquele tempo que esse remédio ardia em intensidade pornográfica, me fez nunca mais querer andar de skate. E nunca mais o fiz.
Deixei de jogar futebol com os amigos por medo. Em um almoço familiar de Páscoa, jogava bola com meus primos. Peladinha de leve, totalmente relax, todo mundo com uma latinha de cerveja nas mãos. Fiz determinado movimento com a perna direita para interceptar um cruzamento de média altura e senti um estalo no joelho. Caí no chão de dor. Arrebentei os ligamentos cruzados em situação completamente boba. Sozinho, sem estresse, em um domingo de Páscoa. Por medo, nunca mais joguei bola.
O medo da covid-19 também vai alterar hábitos não só meus, mas de toda sociedade. Imagino isso quando assisto a filmes ou séries que foram gravados em um tempo quando esse maldito vírus ainda não nos atormentava.
Fico quase histérico com os personagens em situações irresponsáveis sob a perspectiva atual. Quando eles se enfiam em uma multidão para assistir a um show, quase infarto. Quando eles compartilham a mesma garrafa de uísque bebida no bico, meu olhar de reprovação quase quebra a televisão. Quando os jovens passam um baseado descompromissado no pátio da universidade, pareço a tia velha do zap reclamando da molecada. Quando o protagonista adentra um metrô lotado no final da tarde, a gastura me leva a pular a cena.
Pode me chamar de paranoico ou o que bem entender. Tenho consciência de que, talvez, eu esteja me preocupando mais do que deveria. Mas não consigo agir diferente. Olho para o crescimento cruel do número de mortos e me toca o coração lembrar das famílias que choram seus entes queridos, da imensidão dos sonhos enterrados por causa da covid-19. Essa dor me dilacera. Não quero isso para mim ou para os meus. Prefiro a paranoia que o vírus.
Torço para que, no mais breve possível, eu não precise mais recriminar os personagens das obras que assisto. Até lá, deixe-me aqui continuar pagando sapo para a ficção. Isso me poupa de tretar com quem se aglomera sem necessidade na vida real. Ah, esses irresponsáveis…

Pablo Kossa é jornalista, produtor cultural e mestre em comunicação pela Universidade Federal de Goiás